Prefeitura não vai controlar a transmissão da Covid-19 sem tomar decisões com base em evidências; se USP e Fiocruz forem fontes confiáveis, todas as atividades econômicas deveriam estar fechadas
O decreto 12.579/21, publicado ontem, 19 de maio, pela Prefeitura de Araraquara, como medida de enfrentamento à covid-19, vai servir, na verdade, para manter a transmissão comunitária da doença em alta na cidade, segundo parâmetros estabelecidos em estudos publicados pela USP e pela Fiocruz.
Pelo que parece, o prefeito Edinho Silva (PT) aceita conviver com uma média de 2 a 3 mortes por dia e de 80 internados em UTI que podem ter sequelas graves para o resto da vida, mas tem dificuldade de enfrentar interesses econômicos e políticos que querem as escolas e demais atividades abertas.
Se a Prefeitura pretende controlar a pandemia com este decreto, é esperada uma explicação primordial por parte do governo: os percentuais utilizados como referência para abertura ou fechamento das atividades econômicas na cidade foram baseados em quais evidências?
Porque não basta o prefeito dizer que está seguindo a ciência se ele não disser qual estudo, quais dados, quais evidências científicas, quais fontes de pesquisa são usadas para a tomada de decisões. Decisões estas que significam a diferença entre a vida ou a morte de pessoas. Mortes evitáveis, salientamos aqui. E destacamos que a covid-19 mata quatro vezes mais hoje, maio de 2021, do que matava em julho de 2020, quando Araraquara foi destaque por ter a menor letalidade entre cidades do mesmo porte.
Como não sabemos as fontes científicas da Prefeitura, para analisar a pandemia na cidade e os efeitos do decreto vamos utilizar as nossas: USP e Fiocruz.
Estudos publicados por ambas mostram que a pandemia em Araraquara não está nem perto de estar controlada e que os números utilizados pela Prefeitura neste decreto vão manter a cidade com contaminações em alta. E isto, é importante dizer, significa mais gente morrendo todos os dias.
Não é confiável utilizar apenas um indicador para monitorar a pandemia, muito menos para basear decisões e políticas públicas da área da Saúde. O prefeito erra ao se apegar única e exclusivamente ao “percentual de positivados” como régua para definir as ações do governo no combate à pandemia, que é o que consta no decreto.
E não é o SISMAR que diz que é falho usar só o “percentual de positivados” para monitorar a pandemia. Pelos estudos que utilizamos como referência (links no fim do texto), só dá para medir o tal “controle da pandemia” considerando-se dois ou mais indicadores.
No estudo da USP, elaborado especificamente como suporte às decisões e ações do Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP), os pesquisadores usam dois indicadores: o “percentual total de positivados (sintomáticos e assintomáticos)” e o “número de casos por 100 mil habitantes por semana”. No estudo da Fiocruz, são seis, como vamos mostrar mais adiante.
Relacionados, os dois indicadores utilizados no estudo da USP mostram se a pandemia está controlada ou não a ponto de termos segurança para abrir escolas e demais atividades. E estes indicadores precisam ser analisados juntos, justamente para que não haja distorções como a que estamos vendo em Araraquara, onde o percentual de positivados está dando a falsa impressão de controle. O percentual pode estar baixo, mas, pelo estudo da USP, se o número de casos por 100 mil habitantes estiver alto, não há que se falar em “controle da pandemia”. E é este justamente o caso de Araraquara, hoje.
Os pesquisadores desenvolveram um gráfico do tipo mapa de calor, com os dois indicadores relacionados, que permitem visualizar o nível de controle da transmissão da covid-19 em determinada localidade e estabelecem parâmetros objetivos de segurança para retomada de atividades econômicas, inclusive escolas.
Em 28 de março, Araraquara estava assim posicionada, considerando estes dois indicadores: na zona vermelha, ou seja, “descontrole na transmissão, alto risco para qualquer atividade sem distanciamento na comunidade: as escolas não podem ser abertas para atividades presenciais”, de acordo com o estudo.
Mas, Araraquara estava no caminho certo. O lockdown tinha funcionado para reduzir a transmissão, porém foi curto. Se a Prefeitura tivesse mantido escolas e as outras atividades fechadas por mais algum tempo, provavelmente a cidade teria controlado realmente a pandemia e poderíamos estar retomando as atividades com risco muito menor.
Vejam que, no dia 25 de abril, tínhamos melhorado nossa posição no gráfico. Ainda estávamos na zona vermelha, mas nos dirigíamos claramente para a zona laranja, que permite alguma abertura, ainda que com restrições severas.
Entretanto, hoje, dia 19 de maio, após a abertura das escolas e demais atividades, já nos distanciamos novamente das zonas mais seguras, que são as laranja, amarela e azul.
O aumento do número real de casos, que é o indicador “casos por 100 mil habitantes”, fez com que Araraquara se distanciasse ainda mais da zona laranja, além do aumento do percentual de positivados.
O gráfico mostra que, mesmo se o indicador “percentual de positivados” estivesse abaixo de 5%, ainda assim não teríamos controle da pandemia, porque o indicador “casos por 100 mil habitantes” está altíssimo.
Somente a combinação dos dois indicadores, como dito antes, pode nos dar a real dimensão da pandemia na cidade e do nível de insegurança que vivemos.
Ignorar isto e decidir os rumos da cidade sem evidências comprovadas é, no mínimo, irresponsabilidade e pessoas morrerão por causa disso.
Já o estudo da Fiocruz, que utiliza parâmetros dos Conass/Conasems (Conselhos Nacionais de Secretários de Saúde e de Secretarias Municipais de Saúde), publicado ainda em 2020, considera seis indicadores para analisar o nível do risco da pandemia em determinado momento. Este estudo ainda não leva em conta a nova cepa, cuja transmissão é maior, e mesmo assim Araraquara está muito mal posicionada.
O estudo traz uma tabela com pontuação para cada um dos seis indicadores. A soma dos pontos classifica o nível de risco naquela localidade.
Vejamos o caso de Araraquara pela ótica deste estudo. Considerando a tabela abaixo, pontuamos cada indicador de acordo com os dados epidemiológicos da cidade divulgados pela Prefeitura.
Percentual de ocupação UTI – 12 pontos (roxo)
Percentual de ocupação enfermaria – 4 pontos (laranja)
Previsão de esgotamento – 4 pontos (roxo)
Variação de óbitos – 2 pontos (laranja)
Variação de casos – 4 pontos (roxo)
Taxa de positivados – 1 ponto (amarelo)
Total = 27 pontos
Esta pontuação nos coloca em “risco alto”, a segunda pior fase, ainda de acordo com a Fiocruz.
A conclusão, portanto, é a mesma: o novo decreto da Prefeitura de Araraquara desconsidera as evidências científicas e a transmissão da covid-19 vai permanecer alta na cidade.
Mas, o decreto não é de todo errado. Ele acerta na regulamentação da testagem e isolamento rigorosos dos contactantes. Contudo, já era para ser assim desde o início. Então, se a testagem e o isolamento dos contactantes, antes do decreto, não era feita assim, estava sendo feita de maneira errada e não gerava um indicador eficiente para avaliação da contaminação comunitária na cidade. Especialistas recomendam pelo menos 30 testes a cada positivado, nos contactantes. Em Araraquara, em dias com 100 casos, deveriam ser realizados 3 mil testes, mas é feito apenas um terço disso. Ou seja, além de considerar apenas um indicador, ele ainda é falho.
Por isso, por não se basearem em evidências, a abertura das escolas e demais atividades foi feita no momento errado, cedo demais, e, como consequência, não vai durar por muito tempo.
Com o número de contaminados crescendo vertiginosamente, como vimos esta semana, em breve teremos novo lockdown em Araraquara. Logo depois, os números vão cair e tudo vai reabrir. Porém, enquanto o critério adotado pela Prefeitura for apenas o percentual de positivados de olho na ocupação de leitos não teremos controle efetivo da pandemia e ficaremos presos entre um lockdown e outro e a pandemia vai continuar fazendo vítimas na cidade. Pelo menos, cada uma delas vai poder responsabilizar um homem, que é quem decide manter as coisas assim. Link para estudo da Fiocruz: https://portal.fiocruz.br/sites/portal.fiocruz.br/files/documentos/contribuicoes_para_o_retorno_escolar_-_08.09_4_1.pdf
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